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quinta-feira, 24 de março de 2011

A força das mulheres contra a fome

José Graziano da Silva

Não constitui exclusividade brasileira a triste evidência de que a exclusão tem rosto e gênero e pode ser personificada na figura de uma mulher pobre, de baixa escolaridade, trabalhadora rural. O que nem sempre é lembrado é que a redenção desse símbolo da desigualdade pode significar, também, a redenção de um pedaço expressivo da fome, tornando a superação das discriminações de gênero no acesso à terra, ao crédito e a insumos uma das prioridades da luta pela segurança alimentar em nosso tempo.

O alcance dessa agenda não pode ser subestimado.

Nos países pobres e em desenvolvimento, 43% da força de trabalho agrícola é formada por mulheres. A Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) acaba de demonstrar na edição 2010-2011 de sua publicação "O Estado Mundial da Agricultura e da Alimentação" que as restrições de gênero provocam uma produtividade de 20% a 30% menor nas lavouras sob controle feminino, em comparação com áreas equivalentes sob comando masculino.

A igualdade de acesso à terra, insumos e crédito poderia elevar a oferta de alimentos em até 4%, tirando de uma condição de subnutrição de 100 milhões a 150 milhões de pessoas num universo de quase um bilhão de famintos. Fechar o abismo de gênero traria desdobramentos ainda mais expressivos em economias asiáticas e africanas, onde se entrecruzam as manchas de fome mais densas do planeta e, não por acaso, as demografias femininas mais significativas da agricultura.

Enquanto na América Latina e Caribe a participação feminina na mão de obra agrícola é da ordem de 20%, na Costa do Marfim já atinge 36%; bate em 60% no Lesoto, Moçambique e Serra Leoa, sendo superlativa em praticamente toda a África subsaariana. Em muitos casos, tal hegemonia espelha o saldo de conflitos e doenças, como o HIV, ademais do êxodo maciço da força de trabalho masculina.

Razões migratórias distintas, decorrentes sobretudo da aceleração do ciclo industrial, têm peso significativo na China, onde a mulher representa 48% da mão de obra rural com viés ascendente. No Vietnã, quase 50% da produção de arroz, uma das mais importantes do mundo, tem por trás mãos femininas.

Independente da latitude, as produtoras rurais têm menor acesso à terra, a sementes, fertilizantes, ferramentas, tecnologia, extensão e crédito. O desequilíbrio se reproduz no controle das criações que representam 40% da renda no campo. Em todo o mundo, aproximadamente 400 milhões de mulheres agregam o cuidado dos rebanhos aos afazeres domésticos, que incluem a responsabilidade pelos filhos e a alimentação, bem como a de assegurar o suprimento de lenha para o fogo e água limpa para consumo.

A discriminação de gênero gera paradoxos desconcertantes. À medida que a demanda por proteína animal cresce no planeta e os pequenos rebanhos dão lugar a criações intensivas as titulares tradicionais são preteridas. Se tivessem acesso a linhas de crédito específicas para expandir seu próprio criatório - bovino, suíno ou a piscicultura - esse deslocamento seria significativamente menor.

A transição alimentar, ao mesmo tempo, abre uma janela de oportunidade à construção um novo estatuto de gênero no campo. Um leque cada vez mais variado de verduras e frutas frescas, mas também de carnes especiais, peixes, temperos e vegetais semipreparados atende à sofisticação do consumo urbano atualmente, indo ao encontro das aptidões femininas para reafirmar a urgência da democratização de direitos e oportunidades.

Entre as barreiras a serem superadas, uma das mais importantes é a extensão rural. Estudos anteriores da FAO (1988/89) em 97 países demonstraram então que apenas 5% da assistência técnica era dirigida às mulheres, que por sua vez representavam apenas 15% dos extensionistas.

Embora desvalorizadas, elas desempenham papel cada vez mais relevante nas decisões comerciais, sendo o personagem oculto por trás das análises de contratos e compromissos de compra e venda assinados pelos seus companheiros. No Brasil, desde a criação do Fome Zero em 2003 os programas de transferência de renda associaram o seu sucesso a essa aptidão administrativa, dando o cartão de benefícios à mulher da família.

Hoje, 93% dos repasses do Bolsa Família tem a mulher como titular. Idêntica percepção incentivou a criação do Pronaf-Mulher na área do crédito agrícola e canalizou às agricultoras volumes crescentes (24% atualmente) dos recursos destinados à aquisição de safra da produção familiar. A titulação conjunta da terra, obrigatória na política agrária brasileira, é outra conquista exemplar, a contrapelo da discriminação. Precede a essas decisões uma providência ao mesmo tempo simples e crucial: promover a documentação da agricultora, inclusive seu credenciamento comercial, para que possa, de fato, assumir as rédeas do seu negócio.

Num mundo de especulação financeira e eventos climáticos extremos, muitas vezes impermeáveis à ação local, superar a desigualdade de gênero nas políticas agrícolas não pode ser visto como um fardo. A força da mulher na luta contra a fome constitui um trunfo adormecido cujo despertar não pode mais ser adiado.

José Graziano da Silva está licenciado do cargo de Representante Regional da FAO para América Latina e Caribe

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