Por Leonardo Boff
Estamos em tempos de montagem de governos. Há disputas por cargos e funções por parte de partidos e de políticos. Ocorrem sempre negociações, carregadas de interesses e de muita vaidade.
Neste contexto, se ouve citar um tópico da inspiradora oração de São Francisco pela paz “é dando que se recebe” para justificar a permuta de favores e de apoios onde também rola muito dinheiro.
É uma manipulação torpe do espírito generoso e desinteressado de São Francisco. Mas desprezemos estes desvios e vejamos seu sentido verdadeiro.
Há duas economias: a dos bens materiais e a dos bens espirituais.
Elas seguem lógicas diferentes. Na economia dos bens materiais, quanto mais você dá bens, roupas, casas, terras e dinheiro, menos você tem. Se alguém dá sem prudência e esbanja perdulariamente acaba na pobreza.
Na economia dos bens espirituais, ao contrario, quanto mais dá, mais recebe, quanto mais entrega, mais tem. Quer dizer, quanto mais dá amor, dedicação e acolhida (bens espirituais) mais ganha como pessoa e mais sobe no conceito dos outros. Os bens espirituais são como o amor: ao se dividirem, se multiplicam. Ou como o fogo: ao se espalharem, aumentam.
Compreendemos este paradoxo se atentarmos para a estrutura de base do ser humano. Ele é um ser de relações ilimitadas. Quanto mais se relaciona, vale dizer, sai de si em direção do outro, do diferente, da natureza e até de Deus, quer dizer, quanto mais dá acolhida e amor mais se enriquece, mais se orna de valores, mais cresce e irradia como pessoa.
Portanto, é “dando que se recebe”. Muitas vezes se recebe muito mais do que se dá.
Não é esta a experiência atestada por tantos e tantas que dão tempo, dedicação e bens na ajuda aos flagelados da hecatombe socioambiental ocorrida nas cidades serranas do Rio de Janeiro, no triste mês de fevereiro, quando centenas morreram e milhares ficaram desabrigados?
Este “dar” desinteressado produz um efeito espiritual espantoso que é sentir-se mais humanizado e enriquecido. Torna-se gente de bem, tão necessária hoje.
Quando alguém de posses, dá de seus bens materiais dentro da lógica da economia dos bens espirituais para apoiar aos que tudo perderam e ajudá-los a refazer a vida e a casa, experimenta a satisfação interior de estar junto de quem precisa e pode testemunhar o que São Paulo dizia:”maior felicidade é dar que receber”(At 20,35). Esse que não é pobre, se sente espiritualmente rico.
Vigora, portanto, uma circulação entre o dar e o receber, uma verdadeira reciprocidade. Ela representa, num sentido maior, a própria lógica do universo como não se cansam de enfatizar biólogos e astrofísicos.
Tudo, galáxias, estrelas, planetas, seres inorgânicos e orgânicos, até as partículas elementares, tudo se estrutura numa rede intrincadíssima de inter-retro-relações de todos com todos. Todos co-existem, inter-existem, se ajudam mutuamente, dão e recebem reciprocamente o que precisam para existir e co-evoluir dentro de um sutil equilíbrio dinâmico.
Nosso drama é que não aprendemos nada da natureza. Tiramos tudo da Terra e não lhe devolvemos nada nem tempo para descansar e se regenerar. Só recebemos e nada damos. Esta falta de reciprocidade levou a Terra ao desequilíbrio atual.
Portanto, urge incorporar, de forma vigorosa, a economia dos bens espirituais à economia dos bens materiais. Só assim restabeleceremos a reciprocidade do dar e do receber. Haveria menos opulência nas mãos de poucos e os muitos pobres sairiam da carência e poderiam sentar-se à mesa comendo e bebendo do fruto de seu trabalho.
Tem mais sentido partilhar do que acumular, reforçar o bem viver de todos do que buscar avaramente o bem particular. Que levamos da Terra? Apenas bens do capital espiritual. O capital material fica para trás.
O importante mesmo é dar, dar e mais uma vez dar. Só assim se recebe. E se comprova a verdade franciscana segundo a qual ”é dando que recebe” ininterruptamente amor, reconhecimento e perdão. Fora disso, tudo é negócio e feira de vaidades.
Leonardo Boff é autor de A oração de São Francisco, Vozes 2010.
segunda-feira, 31 de janeiro de 2011
sexta-feira, 28 de janeiro de 2011
Crise alimentar e inflação deverão ser enfrentadas com mais elevação da taxa de juros
Guilherme Delgado para o Correio da Cidadania
Mais uma vez a conjuntura econômica revela pressão inflacionária oriunda dos mercados agrícolas, com ênfase nas carnes, cereais, grãos e açúcar, setores em que o Brasil ocupa hoje posição protagônica no comércio internacional.
Fora esta uma situação puramente conjuntural, determinada por fatores climáticos, que normalmente tendem a gerar flutuações não planejadas nas safras agrícolas, o assunto mereceria apenas notas de rodapé, ou notícias no espaço dos fenômenos da natureza.
Mas a questão nos seus aspectos causais não é tão trivial assim, repercute diretamente no custo de vida da população mais pobre e provavelmente será remediada pela política monetária, de uma maneira convencional e inadequada: com elevação da taxa interna de juros, a Selic
Observe-se que a conjuntura altista dos alimentos em 2010 (INPC cresce 6,47% e alimentos 10,42%) não é fato fortuito. Ocorreu também nos exercícios de 2007/2008 e 2002/2003, cada qual com explicações conjunturais específicas, mais adiante comentadas, revertidas nas safras seguintes, mas que retornam sempre que melhoram os preços de exportação das "commodities".
As tensões inflacionárias sobre cereais, grãos, carnes, açúcar etc. são hoje globalizadas, mas no Brasil elas incidem com maior força, em razão da nossa notória dependência externa da exportação de "commodities". É neste sentido, portanto, que se pode falar de fator estrutural que vincula tensões inflacionárias com o setor agrícola, diferentemente do diagnóstico estrutural da inflação do Plano Trienal de 1962 do governo João Goulart.
O fenômeno inflacionário, enquanto manifestação puramente empírica, se revela pela elevação de preços relativos de determinado conjunto de bens, com potencial de influenciar o nível geral de preços - como é o caso reiterado dos preços agrícolas em várias conjunturas recentes. Como tal, esse fenômeno ainda não é regular e sistemático, de sorte a ensejar a construção de correlações empíricas. Mas revela por outro lado tensões latentes nesses mercados globais, a que somos levados a internalizar, em geral de forma desfavorável, como nos revela a sequência de episódios recentes.
Em 2002/2003 essas tensões tiveram clara conotação monetária (falta de liquidez externa) - a taxa de câmbio foi a quatro reais por dólar e com isto puxou para cima o preço em real das "commodities". Em 2007/2008 já tínhamos uma conjuntura inversa do ponto de vista monetário internacional; excesso de liquidez (o dólar fica no entorno de 2 reais) combinada com forte pressão de demanda real e especulativa nos mercados organizados de produtos primários. A conseqüência para o Brasil também foi de pressão mais que proporcional dos preços dos alimentos, puxando o INPC para cima. Em 2010 continua o cenário externo de excesso de liquidez, com o dólar a 1,70 reais, mas com forte pressão externa sobre os preços das "commodities".
Em todo este período considerado - 2000/2002 a 2010 - as exportações totais brasileiras pularam de uma média de 57,9 bilhões de dólares no início do período para 200 bilhões no final. No mesmo tempo houve um forte aumento de participação dos produtos primários - de 44% da pauta de exportações (2000/2002) para cerca de 60% em 2010, considerados neste cálculo produtos básicos e semi-manufaturados.
A especialização primário-exportadora no comércio exterior, com forte participação de produtos alimentares da cesta básica, perseguiu, sem alcançar, a eliminação do déficit em conta corrente do balanço de pagamentos. Neste meio tempo, internalizou toda sorte de tensão inflacionária, de origem monetário-financeira ou dos mercados agrícolas mundiais.
Para todas essas conjunturas a autoridade monetária, o Banco Central, agiu da mesma forma: elevou a taxa interna de juros para conter a demanda doméstica, sem que com isso prevenisse a tensão estrutural. E agora, como agirá?
Guilherme Costa Delgado é doutor em economia pela UNICAMP e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.
Mais uma vez a conjuntura econômica revela pressão inflacionária oriunda dos mercados agrícolas, com ênfase nas carnes, cereais, grãos e açúcar, setores em que o Brasil ocupa hoje posição protagônica no comércio internacional.
Fora esta uma situação puramente conjuntural, determinada por fatores climáticos, que normalmente tendem a gerar flutuações não planejadas nas safras agrícolas, o assunto mereceria apenas notas de rodapé, ou notícias no espaço dos fenômenos da natureza.
Mas a questão nos seus aspectos causais não é tão trivial assim, repercute diretamente no custo de vida da população mais pobre e provavelmente será remediada pela política monetária, de uma maneira convencional e inadequada: com elevação da taxa interna de juros, a Selic
Observe-se que a conjuntura altista dos alimentos em 2010 (INPC cresce 6,47% e alimentos 10,42%) não é fato fortuito. Ocorreu também nos exercícios de 2007/2008 e 2002/2003, cada qual com explicações conjunturais específicas, mais adiante comentadas, revertidas nas safras seguintes, mas que retornam sempre que melhoram os preços de exportação das "commodities".
As tensões inflacionárias sobre cereais, grãos, carnes, açúcar etc. são hoje globalizadas, mas no Brasil elas incidem com maior força, em razão da nossa notória dependência externa da exportação de "commodities". É neste sentido, portanto, que se pode falar de fator estrutural que vincula tensões inflacionárias com o setor agrícola, diferentemente do diagnóstico estrutural da inflação do Plano Trienal de 1962 do governo João Goulart.
O fenômeno inflacionário, enquanto manifestação puramente empírica, se revela pela elevação de preços relativos de determinado conjunto de bens, com potencial de influenciar o nível geral de preços - como é o caso reiterado dos preços agrícolas em várias conjunturas recentes. Como tal, esse fenômeno ainda não é regular e sistemático, de sorte a ensejar a construção de correlações empíricas. Mas revela por outro lado tensões latentes nesses mercados globais, a que somos levados a internalizar, em geral de forma desfavorável, como nos revela a sequência de episódios recentes.
Em 2002/2003 essas tensões tiveram clara conotação monetária (falta de liquidez externa) - a taxa de câmbio foi a quatro reais por dólar e com isto puxou para cima o preço em real das "commodities". Em 2007/2008 já tínhamos uma conjuntura inversa do ponto de vista monetário internacional; excesso de liquidez (o dólar fica no entorno de 2 reais) combinada com forte pressão de demanda real e especulativa nos mercados organizados de produtos primários. A conseqüência para o Brasil também foi de pressão mais que proporcional dos preços dos alimentos, puxando o INPC para cima. Em 2010 continua o cenário externo de excesso de liquidez, com o dólar a 1,70 reais, mas com forte pressão externa sobre os preços das "commodities".
Em todo este período considerado - 2000/2002 a 2010 - as exportações totais brasileiras pularam de uma média de 57,9 bilhões de dólares no início do período para 200 bilhões no final. No mesmo tempo houve um forte aumento de participação dos produtos primários - de 44% da pauta de exportações (2000/2002) para cerca de 60% em 2010, considerados neste cálculo produtos básicos e semi-manufaturados.
A especialização primário-exportadora no comércio exterior, com forte participação de produtos alimentares da cesta básica, perseguiu, sem alcançar, a eliminação do déficit em conta corrente do balanço de pagamentos. Neste meio tempo, internalizou toda sorte de tensão inflacionária, de origem monetário-financeira ou dos mercados agrícolas mundiais.
Para todas essas conjunturas a autoridade monetária, o Banco Central, agiu da mesma forma: elevou a taxa interna de juros para conter a demanda doméstica, sem que com isso prevenisse a tensão estrutural. E agora, como agirá?
Guilherme Costa Delgado é doutor em economia pela UNICAMP e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.
quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
A questão dos alimentos
Wladimir Pomar para o site Correio da Cidadania
Em seu discurso programático, a presidenta Dilma colocou em pauta um problema ao mesmo tempo importante e polêmico. Ela afirmou que o apoio aos grandes exportadores não é incompatível com o incentivo, o desenvolvimento e o apoio à agricultura familiar e ao micro-empreendedor. Com razão ela acentuou que as pequenas empresas são responsáveis pela maior parcela dos empregos permanentes em nosso país e merecerão políticas tributárias e de crédito perenes.
No caso específico dos grandes exportadores do agronegócio, ela também poderia ter afirmado que o apoio ao esse setor da agricultura brasileira não deve ser incompatível com o desenvolvimento e o apoio à agricultura familiar. No entanto, ela apenas se referiu às políticas de apoio. O que não exclui a necessidade de o governo, nessa questão concreta, levar em conta que a lógica de desenvolvimento do agronegócio é contrária ao desenvolvimento da agricultura familiar.
Não se pode negar que o agronegócio também gera empregos, embora muitas vezes de má qualidade, e que sua tendência de mecanização, não só dos tratos culturais, mas também das colheitas, reduz sua capacidade de geração de empregos permanentes. Mas a questão principal, que deve preocupar o governo no desenvolvimento do agronegócio em contraposição à agricultura familiar, não é essa. É a divisão de trabalho estabelecida na produção de alimentos, produção indispensável à reprodução saudável da força de trabalho e de toda a população brasileira.
Nos últimos oito anos, apesar de todo o esforço do governo Lula para apoiar a agricultura familiar, esta vem sendo paulatina e firmemente engolida pelo desenvolvimento do agronegócio. Não se trata, no caso, apenas de ter pena daquelas famílias cujas terras foram expropriadas por dívidas bancárias ou outras e, em conseqüência, foram posteriormente re-apropriadas pelo agronegócio. Trata-se também de levar em conta as parcelas de agricultura familiar que estão sendo arrendadas a grupos capitalistas do agronegócio para a produção de cana, soja e outras commodities exportáveis.
Nestes casos, as famílias agrícolas podem até estar numa boa situação na condição de rentistas. O problema que se coloca é o da segurança alimentar e da inflação que pode advir de uma oferta muito inferior à demanda, como está ocorrendo desde o final de 2010. Em termos concretos, o agronegócio produz mais de 80% dos produtos agrícolas brasileiros, enquanto a agricultura familiar é responsável por cerca de 20%.
Porém, quase 100% da produção do agronegócio é voltada para commoditites que têm pouco peso na oferta alimentar. A agricultura familiar é obrigada, portanto, a sustentar sozinha a oferta de alimentos. Se a lógica do agronegócio continuar se impondo, mesmo que seja em termos estritamente econômicos, abandonando o antigo e malfadado sistema extra-econômico da grilagem, a oferta alimentar corre perigo de redução. E a idéia de que o Brasil pode aproveitar suas condições de solo, água e clima, para confirmar seu status de celeiro do mundo, certamente naufragará.
Para evitar que essa tendência de redução das famílias produtoras de alimentos continue se impondo, não bastam benefícios tributários e créditos, embora estes sejam fundamentais. É preciso apoiar efetivamente o processo de comercialização dos produtos, evitando que as famílias agrícolas realizem a dupla missão de produzir e comercializar, ou de produzir e vender a preços vis a atravessadores.
É preciso fazer com que os serviços de extensão rural apóiem a cooperação agrícola no processamento daqueles tipos de alimentos que podem ser industrializados, a exemplo das frutas. E ajudar as famílias agrícolas e elevarem sua produtividade e produzirem a custos mais baixos.
Finalmente, é preciso tratar do assentamento de alguns milhões de camponeses, que continuam sem terra para produzir, como uma questão estratégica para ampliar a produção de alimentos, evitando a escassez desses produtos, baixando seus custos e impedindo que os alimentos sejam o vilão do aumento da inflação.
O governo precisa ter em alta conta que, ao promover a expressiva mobilidade social que ocorreu nos dois mandatos do presidente Lula, como disse Dilma, ele elevou a pressão sobre a produção alimentar a um nível que talvez não tenha dimensionado adequadamente. Se se efetivar o compromisso da presidenta, de não descansar enquanto houver brasileiro sem alimento na mesa, superando a pobreza que ainda existe, envergonha nosso país e impede nossa afirmação plena como povo desenvolvido, a pressão sobre os alimentos dará um novo salto.
Portanto, mesmo compreendendo que o agronegócio desempenha um papel importante no desenvolvimento das forças produtivas e no desempenho das exportações, e que a apoio a ele não deve ser negligenciado, talvez já tenha passado a hora de continuar tratando a agricultura familiar como uma questão secundária. Será um erro imperdoável esperar a crise que será criada quando os milhões de brasileiros, que continuam a comer uma vez por dia, ou menos do que isso, tiverem condições de comer três vezes ao dia.
Wladimir Pomar é analista político e escritor.
Em seu discurso programático, a presidenta Dilma colocou em pauta um problema ao mesmo tempo importante e polêmico. Ela afirmou que o apoio aos grandes exportadores não é incompatível com o incentivo, o desenvolvimento e o apoio à agricultura familiar e ao micro-empreendedor. Com razão ela acentuou que as pequenas empresas são responsáveis pela maior parcela dos empregos permanentes em nosso país e merecerão políticas tributárias e de crédito perenes.
No caso específico dos grandes exportadores do agronegócio, ela também poderia ter afirmado que o apoio ao esse setor da agricultura brasileira não deve ser incompatível com o desenvolvimento e o apoio à agricultura familiar. No entanto, ela apenas se referiu às políticas de apoio. O que não exclui a necessidade de o governo, nessa questão concreta, levar em conta que a lógica de desenvolvimento do agronegócio é contrária ao desenvolvimento da agricultura familiar.
Não se pode negar que o agronegócio também gera empregos, embora muitas vezes de má qualidade, e que sua tendência de mecanização, não só dos tratos culturais, mas também das colheitas, reduz sua capacidade de geração de empregos permanentes. Mas a questão principal, que deve preocupar o governo no desenvolvimento do agronegócio em contraposição à agricultura familiar, não é essa. É a divisão de trabalho estabelecida na produção de alimentos, produção indispensável à reprodução saudável da força de trabalho e de toda a população brasileira.
Nos últimos oito anos, apesar de todo o esforço do governo Lula para apoiar a agricultura familiar, esta vem sendo paulatina e firmemente engolida pelo desenvolvimento do agronegócio. Não se trata, no caso, apenas de ter pena daquelas famílias cujas terras foram expropriadas por dívidas bancárias ou outras e, em conseqüência, foram posteriormente re-apropriadas pelo agronegócio. Trata-se também de levar em conta as parcelas de agricultura familiar que estão sendo arrendadas a grupos capitalistas do agronegócio para a produção de cana, soja e outras commodities exportáveis.
Nestes casos, as famílias agrícolas podem até estar numa boa situação na condição de rentistas. O problema que se coloca é o da segurança alimentar e da inflação que pode advir de uma oferta muito inferior à demanda, como está ocorrendo desde o final de 2010. Em termos concretos, o agronegócio produz mais de 80% dos produtos agrícolas brasileiros, enquanto a agricultura familiar é responsável por cerca de 20%.
Porém, quase 100% da produção do agronegócio é voltada para commoditites que têm pouco peso na oferta alimentar. A agricultura familiar é obrigada, portanto, a sustentar sozinha a oferta de alimentos. Se a lógica do agronegócio continuar se impondo, mesmo que seja em termos estritamente econômicos, abandonando o antigo e malfadado sistema extra-econômico da grilagem, a oferta alimentar corre perigo de redução. E a idéia de que o Brasil pode aproveitar suas condições de solo, água e clima, para confirmar seu status de celeiro do mundo, certamente naufragará.
Para evitar que essa tendência de redução das famílias produtoras de alimentos continue se impondo, não bastam benefícios tributários e créditos, embora estes sejam fundamentais. É preciso apoiar efetivamente o processo de comercialização dos produtos, evitando que as famílias agrícolas realizem a dupla missão de produzir e comercializar, ou de produzir e vender a preços vis a atravessadores.
É preciso fazer com que os serviços de extensão rural apóiem a cooperação agrícola no processamento daqueles tipos de alimentos que podem ser industrializados, a exemplo das frutas. E ajudar as famílias agrícolas e elevarem sua produtividade e produzirem a custos mais baixos.
Finalmente, é preciso tratar do assentamento de alguns milhões de camponeses, que continuam sem terra para produzir, como uma questão estratégica para ampliar a produção de alimentos, evitando a escassez desses produtos, baixando seus custos e impedindo que os alimentos sejam o vilão do aumento da inflação.
O governo precisa ter em alta conta que, ao promover a expressiva mobilidade social que ocorreu nos dois mandatos do presidente Lula, como disse Dilma, ele elevou a pressão sobre a produção alimentar a um nível que talvez não tenha dimensionado adequadamente. Se se efetivar o compromisso da presidenta, de não descansar enquanto houver brasileiro sem alimento na mesa, superando a pobreza que ainda existe, envergonha nosso país e impede nossa afirmação plena como povo desenvolvido, a pressão sobre os alimentos dará um novo salto.
Portanto, mesmo compreendendo que o agronegócio desempenha um papel importante no desenvolvimento das forças produtivas e no desempenho das exportações, e que a apoio a ele não deve ser negligenciado, talvez já tenha passado a hora de continuar tratando a agricultura familiar como uma questão secundária. Será um erro imperdoável esperar a crise que será criada quando os milhões de brasileiros, que continuam a comer uma vez por dia, ou menos do que isso, tiverem condições de comer três vezes ao dia.
Wladimir Pomar é analista político e escritor.
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