José Graziano da Silva
Há uma fronteira agrícola cujo potencial transformador poderá decidir o sucesso ou o fracasso da luta contra a fome e a miséria no século XXI: África.
Qualquer fórum relacionado à segurança alimentar e ao combate à miséria terá que levar em conta o peso descomunal desse continente de 800 milhões de habitantes, onde o sempre desconcertante entrelaçamento entre riquezas naturais e miséria atinge níveis superlativos.
Diferentes pontos de fuga - não raro impositivos, violentos - serviram muitas vezes para protelar decisões estratégicas sobre o seu destino, sem considerar as urgências de seu povo.
Mais que nunca, o colapso de 2007/2008 (que ameaça repetir-se em 2011) reafirmou que a questão estrutural da pobreza e do desenvolvimento terá que ser enfrentada, em primeiro lugar, com o empenho da cooperação entre os principais interessados na sua equação: governos e a cidadania das nações mais vulneráveis, mobilizando - sobretudo - seus próprios recursos.
É nesse cenário que se renova a importância e a centralidade da agricultura familiar na reordenação da luta contra a fome em nosso tempo. Oito dos nove países mais devastados pela subnutrição localizam-se no continente africano. Neles, a vida de 200 milhões de homens e mulheres encontra-se raptada pela rotina da insegurança alimentar. A maioria esmagadora vive em zonas rurais - a exemplo do que ocorre no resto do planeta, em que 70% da humanidade faminta concentra-se em pequenas propriedades agrícolas.
A grande diferença é que a África, ao lado da América Latina, é o lugar do mundo em que se encontra a última e preciosa fronteira de expansão agrícola das próximas décadas. Explorá-la diretamente em benefício da segurança alimentar de seus habitantes, ou ser recolonizado por ela é uma escolha política que não admite mais hesitação.
A experiência recente tem lições a ensinar.
A agenda dos anos 90 - com seu repertório de privatizações, Estado mínimo e renúncia às políticas de segurança alimentar - não entregou o que prometeu. A abertura comercial unilateral e indiscriminada revelou-se um desastre para as frágeis agriculturas dos países africanos mais pobres.
Os relatos são pedagógicos. Os subsídios maciços dados aos produtores de algodão dos Estados Unidos, por exemplo, da ordem de US$ 25 bilhões desde 1995, reduziram drasticamente as cotações do produto durante anos. Quase 10 milhões de produtores africanos tiveram prejuízos devastadores no Benin, em Burkina Faso e no Mali.
Na África subsaariana, a expectativa de vida resultante do ciclo neoliberal regrediu aos níveis do início da década de 1970. Desastres climáticos e conflitos fratricidas contribuíram significativamente para agravar essa regressão. O mais grave, porém, é que ali onde sobreveio o infortúnio não havia Estado, planejamento, nem estoques de alimentos para mitigá-lo.
Nos últimos 20 anos, a produção de grãos registrou um crescimento médio de apenas 2,5% nos países africanos enquanto a população cresceu acima disso. E as importações aumentaram, em média, 3,5% ao ano. Estamos falando de um continente que utiliza apenas 14% dos 184 milhões de hectares de terras agriculturáveis de que dispõe.
Se considerarmos a Savana africana, que corta 25 países e guarda profundas semelhanças com o Cerrado brasileiro, a conta vai a 400 milhões de hectares. A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), já identificou 35 projetos de cooperação em 18 países africanos e poderá aportar US$ 12,8 milhões em parcerias para transferência de variedades de cultivares, bem como de tecnologias adequadas à agricultura tropical.
Esse potencial cooperativo requer, em primeiro lugar, uma decisão estratégica de devolver às políticas de segurança alimentar a centralidade que elas nunca deveriam ter perdido no processo de desenvolvimento. Não estamos partindo do zero. A África dispõe de um banco de investimento e sedimentou políticas como a Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD) e o Programa Abrangente para o Desenvolvimento Agrícola Africano (CAADP).
Há, portanto, base fértil a ser semeada pela ação multilateral. A Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) reformou-se, vem fortalecendo suas oficinas regionais para intensificar sua presença como parceira e ponte facilitadora de um grande mutirão de solidariedade produtiva entre Brasil, África e os países da América Latina. É necessário frisar: para que essa empreitada tenha êxito, governos e organizações locais terão que resgatar a agenda da soberania alimentar.
A lógica dos mercados desregulados, que arruinou o sistema financeiro internacional e dissolveu os estoques de segurança alimentar das nações - ademais de subordinar o abastecimento de muitas delas aos impulsos erráticos das cotações especulativas - não se mostrou um método adequado para conduzir a bom termo a luta pela segurança alimentar. Insistir nesse caminho seria repetir em 2011 os mesmos erros que deram origem ao colapso de 2007/2008. A um custo em fome e miséria que não temos o direito de legar às futuras gerações.
José Graziano da Silva é representante regional da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação - FAO para América Latina e Caribe, em licença do cargo para concorrer à direção-geral da organização.
Artigo publicado no Valor Econômico
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