terça-feira, 16 de novembro de 2010
A bússola de uma nova rota
José Graziano da Silva,
Valor Econômico, 16/11/2010
Miséria e fome estão de tal forma interligadas na engrenagem da exclusão mundial que figuram como desafios gêmeos do primeiro Objetivo de Desenvolvimento do Milênio, que tem como meta reduzi-las à metade até 2015. Se a fome pode e deve ter precedência nesse mutirão, pois é uma das principais causas da pobreza, a erradicação da miséria pressupõe ampla gama de iniciativas, voltadas à inserção de quem vive à margem da oferta e da demanda. Tal abrangência redunda em obstáculo adicional a inúmeros governos em todo o mundo que carecem de fôlego fiscal e aparato público compatíveis para uma atuação simultânea em tantas frentes.
A necessidade de eleger prioridades no mundo pobre é incontornável e a FAO considera o fortalecimento da agricultura - em especial da familiar - a mais promissora das escolhas: 85% das propriedades agrícolas do planeta têm área inferior a dois hectares; pequenos produtores e suas famílias somam 2 bilhões de pessoas ou um terço da humanidade; e vivem e trabalham no campo 70% daqueles que passam fome no mundo.
De vários países chegam evidencias de que essa percepção deixou de ser um truísmo para se tornar uma agenda compartilhada por governos que abraçaram a segurança alimentar como responsabilidade do Estado, independente das promessas de ajuda internacional.
Tripé de sucesso: alta taxa de crescimento, segurança alimentar e apoio à agricultura familiar
A exemplo do Brasil, países como Armênia, Nigéria e Vietnã anteciparam-se às metas de redução da fome e da pobreza fixadas para 2015. O documento da FAO "Caminhos para o sucesso" - que encontra-se disponível no site www.rlc.fao.org/pr/pubs/pdf/pathways.pdf - destaca que esses países exibem um tripé composto de elevadas taxas de crescimento associadas a políticas de segurança alimentar e apoio à agricultura familiar.
O Vietnã reduziu em 40% o contingente de subnutridos, em 50% a pobreza extrema, e passa por uma impressionante transformação rural. De certo modo, o país encontra-se um passo à frente daquilo que o programa Territórios da Cidadania persegue no Brasil. Além do apoio técnico à produção, 84% das áreas de várzea foram irrigadas; 93% das comunas ganharam estradas de acesso; 70% delas tem eletricidade; 98%, escolas primárias; 92%, centros de saúde; e, 40%, possui água potável.
Na Nigéria, há mais boas notícias. Uma robusta política de investimento na agricultura familiar ajuda a explicar o êxito do país no combate à fome. Ênfases e resultados semelhantes ajudam a entender o mesmo desempenho na Armênia, cujos planos futuros incluem a melhoria de sua infraestrutura hídrica para reduzir as perdas de água, investimentos no desenvolvimento rural para diminuir a brecha com as zonas urbanas e a proteção da biodiversidade.
Casos de êxito também podem ser apontados na Argélia, Maláui e Turquia, que, como o Brasil, souberam romper a inércia latifundiária do passado e promover uma ampla transformação produtiva no setor agrícola.
Na Indonésia, México e Serra Leoa, o fortalecimento das comunidades rurais pobres permitiu melhorar a produtividade dos empreendimentos de pequena escala.
No Brasil, o pulo do gato foi escapar da armadilha que contrapõe o crescimento econômico e a ação social. O país entendeu que qualquer política social resultaria em assistencialismo se não fosse acompanhada de linhas de passagem focadas no crescimento inclusivo, atendendo a emergência e ao mesmo tempo que aciona medidas que favorecem a emancipação produtiva dos segmentos mais pobres.
Ao harmonizar essas duas vias numa mesma dinâmica de crescimento, conforme preconiza o enfoque de duas vias proposto pela FAO e adotado pelo Fome Zero, o Brasil abriu caminho para um largo horizonte de desenvolvimento. Um piso de sobrevivência pavimentou a vida de 12,4 milhões de lares mais pobres beneficiados pelo Bolsa Família. O salário mínimo teve seu poder de compra corrigido em mais de 70%. Em oito anos, cerca de 24 milhões de pessoas superaram a linha da pobreza. Um amplo leque de fomento deu peso e medida à agricultura familiar reposicionando seu espaço na economia e irradiando desdobramentos benignos no interior da sociedade.
Esse conjunto mostrou-se superior à soma das partes. O mercado de massa brasileiro reúne hoje mais de 50% da população e 46% da renda. Tornou-se uma usina germinadora de renda e inclusão, tendo criado cerca de 15 milhões de empregos formais em oito anos.
Agora, a presidente eleita Dilma Rousseff quer agora dobrar a aposta e erradicar a pobreza extrema. A meta é factível. O mais importante do ponto de vista internacional, porém, é que o Brasil consagrou a supremacia da lógica social na condução das políticas de um desenvolvimento inclusivo e isso terá um efeito irradiador importante na agenda de combate à fome e à pobreza, sobretudo na região da América Latina e no Caribe.
Esperar a maré subir para colocar o barco dos pobres na água tornou-se uma hipótese temerária ante o agravamento do quadro econômico mundial. Mais que nunca, navegar é preciso e os exemplos citados demonstram o acerto de iniciar a pescaria por conta própria. A bússola de uma redução substantiva da fome e da pobreza baliza o percurso dessa nova rota feita de menor dependência e maior inclusão.
José Graziano da Silva é representante Regional da FAO para América Latina e Caribe
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário