Edmilson Lopes Júnior
De Natal (RN) para Terra Magazine
O livro "Elegia para uma re(li)gião", publicado há quase 4 décadas, é um dos clássicos das ciências sociais brasileiras. Nele, com rigor analítico e uma apreensão crítica, mas não desapaixonada do entorno social sobre o qual se debruçou, o sociólogo Francisco de Oliveira explicitou os interesses, disputas, traições e sonhos que estiveram na base da criação e do funcionamento da SUDENE nos seus primeiros anos. Nessa obra, de leitura ainda obrigatória para todos quantos queiram pensar os desafios da desigualdade no Brasil, Oliveira conseguiu deslindar os interesses de classes subjacentes ao projeto de desenvolvimento regional do Nordeste do Brasil. Esboçou ainda uma análise sofisticada a respeito dos limites do planejamento no Brasil. Embora não tenha sido esse o centro do seu projeto de investigação sociológica, o reconhecido sociólogo apontou as diversas formas de "captura dos aparatos locais do Estado" pelas longevas oligarquias políticas da região. Dentre estas, a agora folclórica indústria da seca.
A famigerada "indústria da seca" fornecia, ainda na década de 1970, quando Oliveira escreveu a sua obra, referentes empíricos para a sua análise daquela "captura". De fato, as oligarquias locais ainda reproduziam o seu mando a partir do controle dos recursos destinados aos "nordestinos pobres". Não por acaso, todo um período histórico, com marco inicial nas primeiras décadas do século XX, correspondeu ai apogeu do discurso regionalista, tanto na vida política quanto na produção cultural. Essa produção cumpria o importante papel de justificar o aporte de recursos públicos para as "frentes de serviço" e para as "obras contra as secas" na região. Esses recursos cevaram as elites locais, indica-nos hoje uma já farta literatura nos campos da sociologia, da história e da geografia.
Oliveira não se prendeu ao superficial, e ao que, já então, era folclórico. Viu além. Percebeu formas híbridas, de moderno e arcaico, na promiscuidade entre as elites locais e o Estado. Não por acaso, mirou sua bateria analítico nos fundos públicos mobilizados para a industrialização regional. E percebeu, antes de todo, a insustentabilidade do ciclo de industrialização regional induzida pela SUDENE.
Quatro décadas depois, após anos de crescimento regional acima da média nacional, o que ainda há de muito atual na análise de Oliveira é a eterna apropriação dos fundos públicos pelas elites regionais. Agora, em uma dinâmica modelada pelos ritmos frenéticos da financeirização da vida econômica. A incorporação de faixas do litoral da região à dinâmica da incorporação imobiliária internacional é um exemplo do "novo", que sempre é invólucro do muito antigo nas partes setentrionais do Brasil. O Estado, obviamente, continua presente, subsidiando, direta ou indiretamente, os empreendimentos agora geridos pelos (ou em parceria com) descendentes dos oligarcas de ontem.
A urbanização turística das capitais nordestinas é a face luminosa de um processo que tem o seu lado pouco claro. As torres, condomínios luxuosos e empreendimentos comerciais gigantescos com a durabilidade de um verão, que agora modulam as faces das principais cidades da região, são os símbolos dessa nova dinâmica econômica. Nessas paisagens, atores de ontem e de hoje traçam, lépidos e fagueiros, alianças sorrateiras. Dentre os novos atores, piratas da indústria imobiliária internacional e, como suspeitam não poucas autoridades policiais, organizações criminosas internacionais. Não por acaso, em muitas das recentes operações da Polícia Federal na região, investidores internacionais são desmascarados como atores do crime organizado internacional.
Mas a captura do Estado não ocorre apenas com o subsídio dos "fundos públicos" às novas atividades relacionadas ao turismo. Outras formas, menos sofisticadas, mas igualmente modernosas têm crescido exponencialmente. Refiro-me, em especial, à indústria das consultorias. Relatórios dos gastos públicos de governos e prefeituras da região apontam o peso do pagamento de consultorias nas despesas públicas dos últimos anos. Os resultados dessas consultorias, muitas delas justificadas com palavrório rebuscado, são, para dizer o mínimo, controversos. Trata-se, isso sim, de uma competente drenagem de dinheiro público para cevar, como antes ocorria com a "indústria da seca", a reprodução das elites locais.
Agora, ao invés do açude ou poço do DNOCS na fazenda do dono do poder, temos consultorias realizadas por sócios ou aliados dos potentados de sempre. Com a importante diferença de que, agora, tudo ocorre de forma impecavelmente asséptica. A nova captura do Estado, como sói ocorrer quase sempre nos dias de hoje, assume contornos flexíveis. Empresas virtuais, que contratam terceiras e, último elo da cadeia, um funcionário público que, por um pouco mais ou quase nada, faz o serviço todo de fornecer os dados para, por exemplo, um "profundo diagnóstico" do órgão no qual trabalha. Tudo é muito virtual. Escritórios, consultores e produtos existem virtualmente. Apenas os recursos públicos abiscoitadas é que ganham materialidade. Não raramente, em imóveis e automóveis de luxo.
Embora seja desnecessário, é bom afirmar, para evitar mal-entendidos, que não se está aqui a condenar, de forma ampla e geral, o trabalho de consultorias para os órgãos estatais. Longe disso! Tarefas importantes são assumidas, com competência e honestidade, por muitos consultores em muitas partes do Nordeste e do país. Via de regra, esses consultores ganham pouco, muito pouco. E, geralmente, recebem com atraso os seus devidos pagamentos.
Edmilson Lopes Júnior é professor de sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
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